06/06/2012
Leonardo Boff
O
vazio básico do documento da ONU para a Rio+20 reside numa completa
ausência de uma nova narrativa ou de uma nova cosmologia que poderia
garantir a esperança de um "futuro que queremos”, lema do grande
encontro. Assim como está, nega qualquer futuro promissor.
Para
seus formuladores, o futuro depende da economia, pouco importa o
adjetivo que se lhe agregue: sustentável ou verde. Especialmente a
economia verde opera o grande assalto ao último reduto da natureza:
transformar em mercadoria e colocar preço àquilo que é comum, natural,
vital e insubstituível para a vida como a água, solos, fertilidade,
florestas, genes etc. O que pertence à vida é sagrado e não pode ir para
o mercado dos negócios. Mas está indo, sob o imperativo categórico:
apropria-te de tudo, faça comércio com tudo , especialmente com a
natureza e com seus bens e serviços.
Eis aqui o
supremo egocentrismo e a arrogância dos seres humanos, chamado também de
antropocentrismo. Estes veem a Terra como um armazém de recursos só
para eles, sem se dar conta de que não somos os únicos a habitar a Terra
nem somos seus proprietários; não nos sentimos parte da natureza, mas
fora e acima dela como seus "mestres e donos”. Esquecemos, entretanto,
que existe toda a comunidade de vida visível (5% da biosfera) e os
quintilhões de quintilhões de microrganismos invisíveis (95%) que
garantem a vitalidade e fecundidade da Terra. Todos estes pertencem ao
condomínio Terra e têm direito de viver e conviver conosco. Sem as
relações de interdependência com eles, sequer poderíamos existir. O
documento desconsidera tudo isso. Podemos então dizer: com ele não há
salvação. Ele abre o caminho para o abismo. Enquanto tivermos tempo,
urge evitá-lo.
Tal vazio se deriva da velha
narrativa ou cosmologia. Por narrativa ou cosmologia entendemos a visão
do mundo que subjaz às ideias, às práticas, aos hábitos e aos sonhos de
uma sociedade. Por ela se procura explicar a origem, a evolução e o
propósito do universo, da história e o lugar do ser humano.
A
nossa atual é a narrativa ou a cosmologia da conquista do mundo em
vista do progresso e do crescimento ilimitado. Caracteriza-se por ser
mecanicista, determinística, atomística e reducionista. Por força desta
narrativa, 20% da população mundial controla e consome 80% de todos os
recursos naturais; metade das grandes florestas foram destruídas, 65%
das terras agricultáveis perdidas, cerca de 27 a cem mil espécies de
seres vivos desaparecem por ano (Wilson) e mais de mil agentes químicos
sintéticos, a maioria tóxicos, são lançados na natureza. Construímos
armas de destruição em massa, capazes de eliminar toda vida humana. O
efeito final é o desequilíbrio do sistema-Terra que se expressa pelo
aquecimento global. Com os gases já acumulados, até 2035 fatalmente se
chegará a 3-4 graus Celsius, o que tornará a vida, assim como a
conhecemos, praticamente impossível.
A atual
crise econômico-financeira que mergulha nações inteiras na miséria nos
faz perder a percepção do risco e conspira contra qualquer mudança
necessária de rumo.
Em contraposição, surge a
narrativa ou a cosmologia do cuidado e da responsabilidade universal,
potencialmente salvadora. Ela ganhou sua melhor expressão na Carta da
Terra. Situa nossa realidade dentro da cosmogênese, aquele imenso
processo de evolução que se iniciou há 13,7 bilhões de anos. O universo
está continuamente se expandindo, se auto-organizando e se autocriando.
Nele tudo é relação em redes e nada existe fora desta relação. Por isso,
todos os seres são interdependentes e colaboram entre si para
garantirem o equilíbrio de todos os fatores. Missão humana reside em
cuidar e manter essa harmonia sinfônica. Precisamos produzir, não para a
acumulação e enriquecimento privado, mas o suficiente e decente para
todos, respeitando os limites e ciclos da natureza.
Por
detrás de todos os seres atua a Energia de fundo que deu origem e
sustenta o universo, permitindo emergências novas. A mais espetacular
delas é a Terra viva e os humanos como a porção consciente dela, com a
missão de cuidá-la e de responsabilizar-se por ela.
Esta
nova narrativa garante "o futuro que queremos”. Do contrário seremos
empurrados fatalmente ao caos coletivo com consequências funestas. Ela
se revela inspiradora. Ao invés de fazer negócios com a natureza, nos
colocamos no seio dela em profunda sintonia e sinergia, respeitando seus
limites e buscando o "bem viver", que é a harmonia entre todos e com a
mãe Terra. Característica desta nova cosmologia é o cuidado no lugar da
dominação, o reconhecimento do valor intrínseco de cada ser e não sua
mera utilização humana, o respeito por toda a vida e dos direitos da
natureza e não sua exploração e a articulação da justiça ecológica com a
social.
Esta narrativa está mais de acordo com
as reais necessidades humanas e com a lógica do próprio universo. Se o
documento Rio+20 a adotasse, como pano de fundo, criar-se-ia a
oportunidade de uma civilização planetária na qual o cuidado, a
cooperação, o amor, o respeito, a alegria e espiritualidade ganhariam
centralidade. Tal opção apontaria, não para o abismo, mas para o "o
futuro que queremos”: uma biocivilização da boa esperança.
Leonardo Boff é autor com Mark Hathaway de O Tao da Libertação: a ecologia da transformação, Vozes 2012.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Moderado.