segunda-feira, 4 de junho de 2012

Entrevista | Vladimir Safatle por Renato Dias

“Esquerda renovou seu pensamento”
 
Filósofo da USP ataca “Veja”, critica Gilmar Mendes, é cético sobre Comissão da Verdade, diz que direito à resistência de guerrilhas tem matriz liberal e afirma que Forças Armadas sabem onde estão os desaparecidos
 
unbconservadora.blogspot.com.br


Filósofo Valdimir Safatle: “É o crime organizado que age em Goiás e no Brasil, que se locupleta com empresas”
“Crimes de tortura,
assassinato,
desaparecimento não
se equivalem  aos
da esquerda”
Vladimir Safatle

Renato Dias
Especial para o Jornal Opção

A “Veja”, revista semanal da Editora A­bril, “sabia” das relações promíscuas en­tre o senador Demóstenes Torres (sem partido) e o contraventor Carlinhos Cacho­eira, “não denunciou” o caso e ainda “trans­formou o parlamentar em paladino da ética e da mo­ralidade”. Quem denuncia é o doutor em Filosofia da Uni­versidade de São Paulo (USP) Vladimir Safatle.

Segundo ele, as posições de “Veja” e de seu redator-chefe, Policarpo Júnior, são, no mínimo, “irresponsáveis”. “Senão, uma relação de cumplicidade, já que sabiam que Demós-tenes Torres não possuía legitimidade para ocupar o Parlamento brasileiro”, sustenta o filósofo em entrevista exclusiva ao Jornal Opção.

“Isso demonstra o nível de imperfeição da democracia brasileira. É o crime organizado que age em Goiás e no Brasil, que se locupleta com empresas e mantém relações estranhas com setores da imprensa”, provoca. O empresário Carlinhos Cachoeira foi preso no dia 29 de fevereiro, em Goiânia.

Vladimir Safatle lançou, em maio, o livro “A Esquerda Que Não Teme Dizer Seu Nome” (Três Estrelas, novo selo editorial do Grupo Folha da Manhã). Polêmico, o autor diz expor o que chama de “valores cardeais” da política de esquerda no tem­po presente. “Não houve um esgotamento do pensamento de esquerda.” Apesar do que escreveu o filósofo americano Fran­cis Fukuyama.

O filósofo brasileiro, também estudioso de Jacques Lacan, afirma que os conceitos de esquerda e direita permanecem atuais. “Esconder a dicotomia gera desconforto até aos pensadores da direita.” Crítico, lembra, porém, que a esquerda mantém a capacidade de se autocriticar de forma violenta. “Mas, hoje, estamos em outro momento, de uma esquerda renovada.”

Um dos críticos mais agudos do legado autoritário da ditadura civil-militar (1964 - 1985), o filósofo informa ao Jornal Opção que reserva, hoje, um “ceticismo prudente” sobre os trabalhos da Comissão da Verdade. A instância, instituída pela presidente Dilma Rousseff, terá sete integrantes e dois anos para concluir a sua missão histórica.

“Apesar de possuir personalidades da mais alta estatura moral, intelectual, como Paulo Sérgio Pinheiro e Maria Rita Khel, é uma comissão heteróclita”, registra. Mas Vladimir Safatle insiste que é preciso deixar claro que a Anistia de 1979 não é produto de um acordo, de um pacto, mas uma imposição política do regime civil-militar de 1964. “Nunca houve acordo.”

Para Safatle, o movimento da sociedade civil era contra a Anistia estabelecida pela Lei 6.683. Após condenar a decisão do STF, que considerou válida a lei de João Baptista Figueiredo e cia. ltda., frisa que “ninguém pediu a revisão da Lei de Anistia, mas a sua aplicação”. Vladimir Safatle é curto e grosso:
“O artigo 1º, parágrafo 2º, excetua dos benefícios da Lei de Anistia responsáveis por sequestro, atentado pessoal, terrorismo. O que se pede é a aplicação da lei. Agentes do Estado que cometeram crimes contra a humanidade, como os de tortura, assassinato, desaparecimento forçado e ocultação de cadáver não podem ser beneficiados”, afirma.

Em reparo a quem tenta apontar que a violência do Estado e de seus agentes, que executaram os crimes de prisão ilegal, tortura, assassinato, desaparecimento forçado e ocultação de cadáver, se equivale aos da esquerda armada, Vladimir Safatle afirma que a violência, como resposta ao “Estado totalitário-ditatorial”, se justifica.

Direito à resistência

“Como aponta [o filósofo liberal] John Locke, o cidadão tem o direito de se voltar de forma violenta contra o Estado. O reconhecimento do direito à resistência é um dos fundamentos da democracia”, opina.  1964 foi um golpe de Estado civil-militar contra um governo constitucional, democrático, registra, indignado.

“Qualquer ação de resistência contra um Estado ilegal é uma ação legal”, insiste. Para Vladimir Safatle, o Brasil está aquém da tradição liberal da política. “A sociedade quer saber que empresas financiaram a tortura, quem são os torturadores, onde estão os desaparecidos, elucidar os casos de sequestro de bebês, como nos moldes argentinos.”

“O direito de investigar é um direito fundamental: o Brasil não sabe e tem o direito de saber,” explica o filósofo. Ele diz que não existem dois lados para serem investigados — agentes do Estado e esquerdas. “Os grupos de guerrilha apareceram depois de 31 de março de 1964. Não há nenhum caso de guerrilha de esquerda antes do golpe de Estado.”

A narrativa dos que não querem a investigação dos crimes da caserna alega que a esquerda armada queria implantar, no Brasil, uma ditadura comunista. “Mas isso não torna legal a ação do Estado ilegal.” Ele lembra que, depois de 1945, a tendência hegemônica da esquerda brasileira era de atuar nos marcos da legalidade, como a chilena de Salvador Allende.

“De 1945 a 1964, a esquerda brasileira não saiu da legalidade. Socialista-democrática, a sua atuação era eminentemente eleitoral [e nos movimentos sociais urbanos e rurais], dentro da ordem. “As guerrilhas [urbana e rural] foram produtos da ditadura civil-militar”, garante o organizador do livro “O Que Resta da Ditadura”(Boi­tempo Editorial).

Desaparecidos

“As Forças Armadas sabem onde estão os restos mortais dos desaparecidos políticos brasileiros”, acredita Vladimir Safatle. Fraturada, a sociedade brasileira foi traumatizada em um tempo em que transgressão e lei se misturavam. “Um País que assinava tratados contra a tortura e torturava. Esse trauma, o Brasil tem o direito de se livrar dele.”

Por não ser capaz de acertar as contas com a história, o Brasil rifa o futuro em função do passado, sugere. “O Brasil quer ocupar uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU, mas a sua justiça de tran­sição (do Estado de ex­ceção para a democracia) é uma aberração internacional, uma vergonha”, ataca, em tom de irritação, o filósofo.

“O Brasil é, hoje, o único País da América Latina onde os casos de tortura, de violação dos direitos humanos, aumentaram na democracia.” Agentes do Estado que atuaram à época da ditadura civil-militar e continuaram “naturalizaram a utilização da tortura”. Vladimir Sa­fatle volta a repetir a sua crítica: “A gente rifa o futuro em função do passado”.

Referências teóricas

Depois de torcer o nariz para o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Men­des, a quem acusa de ter beneficiado o dono do Oppor­tunity, Daniel Dantas, Vladimir Safatle joga água benta no filósofo Slavoj Zizek, que teria “reatualizado o pensamento de esquerda”, e conta que leu pouco sobre Zygmunt Bau­man, teórico das “modernidades líquidas”.

Após elogiar o italiano Toni Negri, que criou o conceito de “multidão”, ele diz ter divergências sobre a sua concepção de funcionamento da sociedade capitalista. Vladimir Safatle  cita também como referências atuais, “por desenvolverem um novo paradigma de reflexão”, os pensadores Alain Badiou, Giorgio Agamben e Ernesto Laclau.

Renato Dias, jornalista e sociólogo, é colaborador do Jornal Opção.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Moderado.