“Esquerda renovou seu pensamento”
Filósofo da USP ataca “Veja”, critica Gilmar Mendes, é cético sobre
Comissão da Verdade, diz que direito à resistência de guerrilhas tem
matriz liberal e afirma que Forças Armadas sabem onde estão os
desaparecidos
unbconservadora.blogspot.com.br |
Filósofo Valdimir Safatle: “É o crime organizado que age em Goiás e no Brasil, que se locupleta com empresas”
“Crimes de tortura,
assassinato,
desaparecimento não
se equivalem aos
da esquerda”
Vladimir Safatle
assassinato,
desaparecimento não
se equivalem aos
da esquerda”
Vladimir Safatle
Renato Dias
Especial para o Jornal Opção
A “Veja”, revista semanal da Editora Abril, “sabia” das relações promíscuas entre o senador Demóstenes Torres (sem partido) e o contraventor Carlinhos Cachoeira, “não denunciou” o caso e ainda “transformou o parlamentar em paladino da ética e da moralidade”. Quem denuncia é o doutor em Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) Vladimir Safatle.
Segundo ele, as posições de “Veja” e de seu redator-chefe, Policarpo Júnior, são, no mínimo, “irresponsáveis”. “Senão, uma relação de cumplicidade, já que sabiam que Demós-tenes Torres não possuía legitimidade para ocupar o Parlamento brasileiro”, sustenta o filósofo em entrevista exclusiva ao Jornal Opção.
“Isso demonstra o nível de imperfeição da democracia brasileira. É o crime organizado que age em Goiás e no Brasil, que se locupleta com empresas e mantém relações estranhas com setores da imprensa”, provoca. O empresário Carlinhos Cachoeira foi preso no dia 29 de fevereiro, em Goiânia.
Vladimir Safatle lançou, em maio, o livro “A Esquerda Que Não Teme Dizer Seu Nome” (Três Estrelas, novo selo editorial do Grupo Folha da Manhã). Polêmico, o autor diz expor o que chama de “valores cardeais” da política de esquerda no tempo presente. “Não houve um esgotamento do pensamento de esquerda.” Apesar do que escreveu o filósofo americano Francis Fukuyama.
O filósofo brasileiro, também estudioso de Jacques Lacan, afirma que os conceitos de esquerda e direita permanecem atuais. “Esconder a dicotomia gera desconforto até aos pensadores da direita.” Crítico, lembra, porém, que a esquerda mantém a capacidade de se autocriticar de forma violenta. “Mas, hoje, estamos em outro momento, de uma esquerda renovada.”
Um dos críticos mais agudos do legado autoritário da ditadura civil-militar (1964 - 1985), o filósofo informa ao Jornal Opção que reserva, hoje, um “ceticismo prudente” sobre os trabalhos da Comissão da Verdade. A instância, instituída pela presidente Dilma Rousseff, terá sete integrantes e dois anos para concluir a sua missão histórica.
“Apesar de possuir personalidades da mais alta estatura moral, intelectual, como Paulo Sérgio Pinheiro e Maria Rita Khel, é uma comissão heteróclita”, registra. Mas Vladimir Safatle insiste que é preciso deixar claro que a Anistia de 1979 não é produto de um acordo, de um pacto, mas uma imposição política do regime civil-militar de 1964. “Nunca houve acordo.”
Para Safatle, o movimento da sociedade civil era contra a Anistia estabelecida pela Lei 6.683. Após condenar a decisão do STF, que considerou válida a lei de João Baptista Figueiredo e cia. ltda., frisa que “ninguém pediu a revisão da Lei de Anistia, mas a sua aplicação”. Vladimir Safatle é curto e grosso:
“O artigo 1º, parágrafo 2º, excetua dos benefícios da Lei de Anistia responsáveis por sequestro, atentado pessoal, terrorismo. O que se pede é a aplicação da lei. Agentes do Estado que cometeram crimes contra a humanidade, como os de tortura, assassinato, desaparecimento forçado e ocultação de cadáver não podem ser beneficiados”, afirma.
Em reparo a quem tenta apontar que a violência do Estado e de seus agentes, que executaram os crimes de prisão ilegal, tortura, assassinato, desaparecimento forçado e ocultação de cadáver, se equivale aos da esquerda armada, Vladimir Safatle afirma que a violência, como resposta ao “Estado totalitário-ditatorial”, se justifica.
Direito à resistência
“Como aponta [o filósofo liberal] John Locke, o cidadão tem o direito de se voltar de forma violenta contra o Estado. O reconhecimento do direito à resistência é um dos fundamentos da democracia”, opina. 1964 foi um golpe de Estado civil-militar contra um governo constitucional, democrático, registra, indignado.
“Qualquer ação de resistência contra um Estado ilegal é uma ação legal”, insiste. Para Vladimir Safatle, o Brasil está aquém da tradição liberal da política. “A sociedade quer saber que empresas financiaram a tortura, quem são os torturadores, onde estão os desaparecidos, elucidar os casos de sequestro de bebês, como nos moldes argentinos.”
“O direito de investigar é um direito fundamental: o Brasil não sabe e tem o direito de saber,” explica o filósofo. Ele diz que não existem dois lados para serem investigados — agentes do Estado e esquerdas. “Os grupos de guerrilha apareceram depois de 31 de março de 1964. Não há nenhum caso de guerrilha de esquerda antes do golpe de Estado.”
A narrativa dos que não querem a investigação dos crimes da caserna alega que a esquerda armada queria implantar, no Brasil, uma ditadura comunista. “Mas isso não torna legal a ação do Estado ilegal.” Ele lembra que, depois de 1945, a tendência hegemônica da esquerda brasileira era de atuar nos marcos da legalidade, como a chilena de Salvador Allende.
“De 1945 a 1964, a esquerda brasileira não saiu da legalidade. Socialista-democrática, a sua atuação era eminentemente eleitoral [e nos movimentos sociais urbanos e rurais], dentro da ordem. “As guerrilhas [urbana e rural] foram produtos da ditadura civil-militar”, garante o organizador do livro “O Que Resta da Ditadura”(Boitempo Editorial).
Desaparecidos
“As Forças Armadas sabem onde estão os restos mortais dos desaparecidos políticos brasileiros”, acredita Vladimir Safatle. Fraturada, a sociedade brasileira foi traumatizada em um tempo em que transgressão e lei se misturavam. “Um País que assinava tratados contra a tortura e torturava. Esse trauma, o Brasil tem o direito de se livrar dele.”
Por não ser capaz de acertar as contas com a história, o Brasil rifa o futuro em função do passado, sugere. “O Brasil quer ocupar uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU, mas a sua justiça de transição (do Estado de exceção para a democracia) é uma aberração internacional, uma vergonha”, ataca, em tom de irritação, o filósofo.
“O Brasil é, hoje, o único País da América Latina onde os casos de tortura, de violação dos direitos humanos, aumentaram na democracia.” Agentes do Estado que atuaram à época da ditadura civil-militar e continuaram “naturalizaram a utilização da tortura”. Vladimir Safatle volta a repetir a sua crítica: “A gente rifa o futuro em função do passado”.
Referências teóricas
Depois de torcer o nariz para o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, a quem acusa de ter beneficiado o dono do Opportunity, Daniel Dantas, Vladimir Safatle joga água benta no filósofo Slavoj Zizek, que teria “reatualizado o pensamento de esquerda”, e conta que leu pouco sobre Zygmunt Bauman, teórico das “modernidades líquidas”.
Após elogiar o italiano Toni Negri, que criou o conceito de “multidão”, ele diz ter divergências sobre a sua concepção de funcionamento da sociedade capitalista. Vladimir Safatle cita também como referências atuais, “por desenvolverem um novo paradigma de reflexão”, os pensadores Alain Badiou, Giorgio Agamben e Ernesto Laclau.
Renato Dias, jornalista e sociólogo, é colaborador do Jornal Opção.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Moderado.